Cannabis: negócio de bilhões

Com potencial agrícola, econômico e médico, pesquisadores, pacientes e agentes públicos estão de olho na cannabis e em seus diversos usos.

A revolução canábica já é realidade”, anuncia em suas plataformas digitais a startup mineira ADWA Cannabis, que tenta inserir o Brasil nesta revolução que perpassa as áreas agrícola, econômica e médica. Em outras palavras, a missão da empresa é tornar o país competitivo no crescente mercado internacional em torno desta planta tão controversa.

Focado em desenvolvendo tecnológico para a cadeia produtiva da cannabis, a ideia do empreendimento surgiu dentro dos laboratórios de uma das mais tradicionais escolas de agronomia do país, a Universidade Federal de Viçosa (UFV), que, mais uma vez, ganha o rótulo de pioneira a se tornar, em 2019, a primeira instituição de ensino e pesquisa brasileira a ter um programa de melhoramento genético
para a planta, operando em parceria com a ADWA Cannabis.

Na tentativa de caminhar rumo ao futuro, a tradição e a experiência da UFV encontram a inovação e a criatividade presente em jovens pesquisadores, como Sérgio Barbosa Ferreira Rocha, fundador e diretor executivo da startup. Geógrafo e engenheiro agrônomo, ele acompanha as possibilidades do uso medicinal da cannabis desde o final dos anos 1990 e quando ingressou na UFV, passou a olhar para planta a partir da ótica agrícola. “Em 2016, já durante o curso de agronomia, percebi a demanda do Brasil por pesquisas agronômicas sobre a cannabis”, conta o mestrando em Genética e Melhoramento de Plantas no Departamento de Fitotecnia da universidade.

Terras ideais
Essa percepção o levou a desenvolver o primeiro Zoneamento Agroclimático para cultivo de Cannabis no Brasil, mostrando que 80% dos solos cultiváveis no país são aptos para o desenvolvimento agrícola da cannabis sativa em campo aberto, conhecida também como maconha. Ainda de acordo com o ranking de aptidão agrícola, os estados do Nordeste e a região próxima da fronteira com o Paraguai são as melhores áreas para o cultivo.

Diante deste potencial, os pesquisadores da UFV viram a necessidade de criar o programa de melhoramento genético para o desenvolvimento de sementes capazes de atender as condições agronômicas e climáticas brasileiras. São quatro cultivares que estão sendo pesquisadas, originárias da Colômbia e de países da Europa. “Precisamos desenvolver plantas robustas, que tenham perfil de óleos
conhecidos quanto à dosagem de CBD, THC e os demais canabinóides. Precisamos também gerar plantas adaptadas ao nosso comprimento do dia”, afirma o agrônomo, Derli José Henrique da Silva, professor titular na UFV e orientador de Rocha.

As barreiras culturais colocam grandes desafios aos cientistas, mesmo para os que trabalham em ambientes de pesquisas qualificados, como a UFV e outras universidades brasileiras. Além da
desinformação em torno do tema, existe o fato de que o cultivo é proibido com a justificativa de reprimir o uso recreativo da maconha. Sendo assim, apenas agentes com autorização judiciária podem cultivar
a planta, ainda que seja para fins de experimentos científicos. “Nosso cultivo está amparado por uma decisão na esfera da justiça federal onde todas as autoridades de segurança do país foram notificadas e
tiveram tempo hábil para se manifestar”, explica Rocha.

As dificuldades não terminam com a concessão de uma autorização pelo Poder Judiciário. Como o cultivo e a pesquisa legal são pequenos, a escassez de insumos é grande. Portanto, todo o material para os experimentos é importado. Apesar dos percalços, o pioneirismo da pesquisa de Viçosa (MG) poderá abrir importantes caminhos.

Questão de saúde
Da mesma forma que as universidades, alguns brasileiros conseguiram na justiça o direito de cultivar a maconha para fins medicinais. A cannabis é usada em diversos tratamentos, aliviando dores e proporcionando maior qualidade de vida a pacientes com doenças como câncer, dor crônica, epilepsia e glaucoma, segundo informações da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Esses efeitos positivos, ainda de acordo com a fundação, são possíveis graças a medicamentos feitos a partir da substância canabidiol (CBD), elemento da cannabis com propriedades analgésicas e relaxantes.

Acompanhando outros países, uma resolução de março de 2020 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a autorizar a fabricação e comercialização de produtos à base de canabidiol no Brasil. A agência sanitária concedeu o primeiro registro para um medicamento à base de cannabis em 2016, indicado para o tratamento de adultos que tenham espasmos relacionados à esclerose múltipla. Vale registrar que todo produto a base da planta deve ser utilizado apenas por meio de recomendações médicas.

A resolução da Anvisa, na prática, não autoriza o cultivo comercial e artesanal da cannabis. Portanto, aqueles que desejam produzir a planta e seus derivados em casa ou em associações precisam ainda
buscar respaldo judicial ou atuar de forma ilícita, caminho que muitas famílias optam quando não possuem condições de importar um medicamento registrado pela agência sanitária.

Fundador da Santa Cannabis (Associação Brasileira de Cannabis Medicinal), Pedro Luis Sabaciauskis começou a cultivar a espécie em casa por meio de “desobediência civil”, como afirma. Isso porque sua avó, Edna Aparecida Estrela Ferrreira, diagnosticada com Parkison, teve indicação médica para utilizar o cannabidiol, mas a família, naquela altura, não tinha condições de comprar no exterior, o que ficaria em torno de R$30 mil.

Atualmente, ONGs, organizações autônomas e associações, como a liderada por Sabaciauskis, prestam serviços médicos e jurídicos para diversos tipos de pacientes. Além disso, esses atores da sociedades civil oferecem auxílio a associados que querem cultivar a planta em casa e desenvolvem, por fim, um trabalho
junto à opinião pública sobre o tema. Considerando que os medicamentos à base de cannabis importados são mais caros e a autorização judicial para cultivar em casa exige várias etapas, Sabaciauskis
afirma que apenas uma parcela financeiramente privilegiada da população tem acesso a esses produtos. “O papel da associação é lutar para que todos tenham esse direito, principalmente aqueles que não podem pagar”, afirma Sabaciauskis. No Brasil, 7.800 pessoas são autorizadas pela Anvisa para importar, em dólar, a cannabis medicinal.

Uma legislação clara e sustentada por dados científicos poderia ajudar nesse processo. Contudo, dado o contexto político atual, altamente polarizado, é difícil visualizar a regulamentação via lei. No início de dezembro de 2020, o governo brasileiro votou contra resolução da Comissão de Narcóticos das Nações Unidas (ONU) que retirou a planta da lista de entorpecentes perigosos, reconhecendo ainda suas funcionalidades medicinais. Essa medida poderá impulsionar pesquisas e ajudar na legislação em diferentes países. Além do Brasil, Rússia e Cuba foram outros países que votaram contra.

Cultivo artesanal
Apesar de ser viável, o cultivo caseiro da cannabis e, posteriormente, a produção de óleos e medicamentos exigem muita dedicação. Na internet, é possível encontrar organizações que oferecem dicas agronômicas para auxiliar os agricultores artesanais com o objetivo de democratizar e ampliar o uso medicinal da planta. Criada em 2010 por um grupo de engenheiros e pessoas de outras áreas, a Raspa da
Canela Crew tem um curso gratuito no Youtube sobre produção e crescimento de cannabis. “Queremos difundir o conhecimento sobre a planta, sempre aberto à ajuda externa. Temos um curso sem fins
lucrativos e ensinamos as associações e as pessoas que tem habeas corpus”, afirma a organização. As dicas da Raspa focam no cultivo protegido. “É preciso cumprir os protocolos agronômicos. Sempre deixar
o espaço limpo, fresco e equilibrar a quantidade de água, ph e outros elementos comuns da produção agrícola”.

Potencial econômico alavanca legislações
Apesar do foco dos pesquisadores e membros de associações estar no uso medicinal, o potencial agroeconômico da cannabis, incluindo usos recreativos e industriais, já está na mira de setores mundo afora. Nos Estados Unidos, onde alguns estados têm legislações mais permissivas para a planta, a previsão é que o mercado de cannabis, considerada uma commodity agrícola, movimentará U$ 30 bilhões por ano a partir de 2025, aponta relatório da New Frontier Data. O estudo revela também que 38,4 milhões de pessoas utilizam cannabis pelo menos uma vez ao ano nos Estados Unidos.

Na Europa, o governo português autorizou, em agosto de 2020, o cultivo de cânhamo, uma variedade botânica de cannabis, para uso industrial. Na ocasião, Maria do Céu Antunes, ministra da Agricultura daquele país reconheceu “o potencial econômico e agrícola da espécie, entendeu assim clarificar e regular a forma de autorização e controle, à semelhança do que ocorre em vários outros países
da União Europeia onde o cultivo desta espécie já é realizado em larga escala”.

Bastante fibroso, o cânhamo não gera efeitos psicoativos, já que possui apenas 0,3% de THC. Sua utilidade, no entanto, é múltipla na indústria de alimentos, cosméticos, construção civil e têxtil.
Aqui no Brasil, as pesquisas estão focadas nos usos medicinais. Contudo, caso a legislação avance, o agronegócio do país pode se beneficiar com as diferentes variedades de cannabis. No Congresso Nacional, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) apresentou, em agosto de 2020, um projeto de lei para legalizar o cultivo da cannabis para fins médicos e industriais no país. De acordo com o texto do projeto, a produção seria reservada a empresas autorizadas pelo Mapa – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Posted by admin in : Pesquisa,